sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Noite feliz

Madrugada fria e chuvosa, o chinelo batido protege o antigo e machucado pé. Pedro. Assim é chamado o nosso herói por entre os amigos da coleta de recicláveis. Ele está com sorte nesta noite; ganhou alguns trocados, durante o dia, das idosas que recebiam a aposentadoria do mês; sua tática era antiga, abordar as senhoras pedindo-lhes moedas pra matar a fome, e em dia de pagamento, na porta dos bancos, é fácil persuadir os bons corações movidos pelo medo.

Conseguiu comer num restaurante popular, comida barata, gostosa, “pena que é só o almoço” pensa Pedro. O seu estomago que não pensa, mas grita; gritou alto e pediu mais às moças que depositam a ração na bandeja rasa. Depois dos olhares que o culpavam, ele foi servido.

“O presente não espera o amanhã”. Pedro gosta de lembrar dos tempos em que era estudante de filosofia, lembra das discussões na faculdade e sempre diz a si frases soltas ora suas ora dos filósofos preferidos. A filosofia, porém, nesta noite, está na falta de ruídos do estomago, comera pro dia e pra noite.

Com sua carroça sempre a lhe fazer companhia e, pros castigos do profeta camarada dos céus, uma capa de chuva amarela, cor de destaque que evita o choque com os carros acelerados controlados pelo álcool; Pedro vai caminhando e ...

olhando sempre atento aos detalhes da rua, os prédios, os faróis e o olhar mais que atento, olhar de sobrevivência, aos restaurantes. “ah... estes merecem minha atenção”; aguardava, aguarda, aguardará os restos que não cabem mais nas barrigas já cheias; por sorte a comida é negada por uns e oferecida em sacos pretos a outros. Sempre antes do jantar, como que num ritual religioso, Pedro se lembra...


Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio,
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão.
Não era um gato.
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

Ainda quente, tem de tudo, macarrão, arroz, feijão, pedaços de frutas mordidas e dessa vez, algo raro, um livro.

Mastiga
Engole



pirenco

Um comentário:

Danilo Cruz disse...

Eu entendo este como um dos escritos mais 'penerado' de Bruno S. Talvéz porque o social me agrade, mas tenho certeza que é a linguagem própria o que mais é profundo e real neste. Já que, o que procuro mesmo são linguagens. A 'cena' implantada com o poema de Manuel...
Muito real, é como se tivesse acontecendo tudo aqui, agora!